Protocolo sugere parâmetros para médicos escolherem quais pacientes com covid-19 terão prioridade
Um protocolo para atendimento a vítimas da covid-19, lançado por quatro entidades médicas nacionais, sugere parâmetros para os médicos escolherem quais pacientes terão prioridade para ir para UTIs ou respiradores – procedimentos que podem ser fundamentais para que não morram. Segundo o documento, baseado em resoluções do Conselho Federal de Medicina, na legislação nacional, na constituição federal e outros textos, os recursos “em esgotamento” deveriam ser alocados para quem tiver mais chance de sobrevivência.
Pacientes em estado muito grave, com chances reduzidas de vida, receberiam outros cuidados, possivelmente em enfermaria. A triagem considera escores de avaliação de funções chave, comorbidades preexistentes e possibilidade de um ano ou mais de sobrevida. A adoção das medidas não é obrigatória – é uma sugestão com bases legais e científicas para que a escolha seja feita.
“A gente sabe que isso daí (escolher quem vai receber o recurso que pode salvar sua vida) é muito duro do ponto de vista moral”, diz a médica intensivista Lara Kretzer, uma das autoras das “Recomendações da AMIB (Associação de Medicina Intensiva Brasileira), ABRAMEDE (Associação Brasileira de Medicina de Emergência, SBGG (Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia) e ANCP (Academia Nacional de Cuidados Paliativos) de alocação de recursos em esgotamento durante a pandemia por COVID-19”. “É uma decisão moralmente pesada. A gente não é treinado para isso”, afirma. O documento também foi escrito por Eduardo Berbigier, Rafael Lisboa, Ana Cristina Grumann e Joel Andrade.
O modelo de triagem foi criado pela AMIB e pela ABRAMEDE e revisado pela SBGG e pela ANCP. Ele recomenda que, primeiro, seja calculado, para o paciente, o escore Sofa (Sequential Organ Failure Assessment). Trata-se de um sistema de pontuação usado internacionalmente, que considera as funções respiratória, cardiovascular, hepática, renal, neurológica e de coagulação. Cada um desses fatores recebe uma nota, de zero a quatro – quando mais alta, pior o estado.
Em seguida, avalia-se se o doente tem comorbidades graves – outras doenças, em estado avançado-, com expectativa de sobrevida menor que um ano. A avaliação é convertida em pontos, preferencialmente pelo SPCIT-BR (versão nacional do Supportive and Palliative Care Indicators Tool) ou PIG-GSF (Proactive Identification Guidance Registration Form). São instrumentos com dados clínicos que sugerem maior probabilidade de que o paciente esteja no último ano de vida.
O terceiro fator a ser aplicado é uma “medida de funcionalidade, ou Performance Status, chamado ECOG, escala desenvolvida pelo Eastern Cooperative Oncology Group. Amplamente usado em pacientes com câncer, o ECOG “busca quantificar a capacidade funcional física e capacidade de independência e autocuidado do paciente.” Quanto pior o PS, menor a reserva fisiológica do paciente e piores os desfechos clínicos, afirmam os autores no documento.
O documento recomenda então que se some os pontos dos três itens anteriores. E aconselha alocar “o leito de UTI ou VM (ventilador mecânico) ao paciente com menor pontuação total desde que não tenha havido empate”. Se pacientes ficarem empatados, o desempate será, primeiro pelo menor escore SOFA total. Depois, se prevalecer a igualdade nas avaliações, será resolvido pelo julgamento clínico da equipe de triagem.
PRÉ-CONDIÇÕES
Lara Kretzer destaca que o uso do protocolo de triagem deveria ser uma exceção, imposta pela realidade de falta de vagas ante o avanço do novo coronavírus. Não exime, afirma, as autoridades de investir na ampliação dos recursos destinados ao atendimento dos pacientes da pandemia. E só poderia ser acionado, de acordo com o documento, se fossem atendidas algumas condições. Entre elas, estão a identificação da compatibilidade do protocolo com o arcabouço bioética e legal brasileiro; a declaração de estado de emergência em saúde pública; o reconhecimento de que foram feitos esforços razoáveis para aumentar a oferta dos recursos em esgotamento.
“Tudo (no processo de triagem) deve ser registrado, escrito, sujeito a auditoria”, diz Lara. Ela afirma que o protocolo de triagem “tira o peso da decisão técnica, da decisão moral e da questão jurídica” dos profissionais envolvidos. O processo de triagem deveria ser comunicado à família do paciente “de forma empática”, diz o documento.
O documento cita como base a Constituição federal e seu reconhecimento, como princípio, da dignidade da pessoa humana; resoluções do Conselho Federal de Medicina e dispositivos do Código de Ética Médica que vedam a eutanásia (abreviação da vida do paciente, mesmo a pedido dele) e a distanásia (o seu prolongamento, com procedimentos inúteis). Os mesmos textos permitem a ortotanásia (limitação ou suspensão de procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável), e citam a obrigação de cuidados paliativos. Também é lembrada resolução do CFM que estabelece critérios para indicação de admissão ou alta para pacientes em UTI.
“A resolução recomenda que as admissões em UTI devem ser baseadas, entre outros critérios, na necessidade do paciente, prognóstico e potencial benefício para o paciente. Os critérios de priorização são: i) Prioridade 1: pacientes que necessitam de intervenções de suporte à vida, com alta probabilidade de recuperação e sem nenhuma limitação de suporte terapêutico; ii) Prioridade 2: pacientes que necessitam de monitorização intensiva, pelo alto risco de precisarem de intervenção imediata, e sem nenhuma limitação de suporte terapêutico; iii) Prioridade 3: pacientes que necessitam de intervenções de suporte à vida, com baixa probabilidade de recuperação ou com limitação de intervenção terapêutica; iv) Prioridade 4: pacientes que necessitam de monitorização intensiva, pelo alto risco de precisarem de intervenção imediata, mas com limitação de intervenção terapêutica; e v) Prioridade 5: pacientes com doença em fase de terminalidade, ou moribundos, sem possibilidade de recuperação”, afirma o documento.
O ponto de partida para o trabalho concluído pelas quatro entidades em 1º de maio foi um modelo norte-americano, desenvolvido no Estado de Maryland, mas foi preciso adaptá-lo ao Brasil. Um ponto rejeitado aqui, após consulta pública a outras entidades, inclusive das áreas de bioética e jurídica, foi o uso do critério idade na triagem. No modelo brasileiro, esse parâmetro foi considerado discriminatório – e eliminado. Houve também preocupação para que nos processos de escolha, não pesem questões de gênero, raça, renda, origem social etc.